FICÇÃO X REALIDADE
A ficção cyberpunk é uma crítica a todo o nosso sistema, não só ao desenvolvimento de tecnologias, mas também ao capitalismo, ao monopólio de grandes empresas, à globalização e ao apagamento de identidades culturais singulares. Para a preocupação de muitos, conforme o tema vai se aprofundando, é possível encontrar cada vez mais semelhanças da ficção com a realidade hoje.
"Lá atrás, as pessoas olhavam pra isso, escreviam pensando num futuro distópico; né, hoje em dia, a gente vive num futuro distópico", comenta o designer e ativista Pedro Inoue.
Gustavo Colombo, roteirista e diretor do projeto Universo Gambiarra, aponta que a cidade do Rio de Janeiro é um dos muitos exemplos onde há essa aproximação. "O Rio é muito cyberpunk. O Centro da Cidade, Madureira, São Cristóvão, tem muitos lugares. E até a ideia de você ter a Zona Sul como uma coisa meio isolada do resto da cidade, meio numa bolha com gente rica, é basicamente um conceito de cyberpunk aplicado no Rio de Janeiro", explica o roteirista.
"No outro dia um drone atacou uma facção soltando bomba na outra. Acho que não tem coisa mais cyberpunk do que esses elementos. O Rio de Janeiro tem muito disso. E essa ideia extrema para uma pobreza absurda, bizarra, do lado de um prédio comercial e as pessoas todas normais, ignorando essa pobreza. E com um certo cinismo. Então essa coisa do cyberpunk está na cara do Rio", argumenta Gustavo.
No entanto, as semelhanças não param por aí. Com o passar do tempo, o cyberpunk acabou realizando previsões negativas e, muitas vezes, alarmantes sobre o futuro da humanidade. Não, ainda não existem cyborgs andando livremente pelas ruas, mas, além de criações fantasiosas como carros voadores e implantes de chips no cérebro das pessoas, outra grande preocupação presente tanto na ficção quanto na realidade é a relação entre os humanos e as inteligências artificiais. Essa interação, que antes parecia distante e exclusiva da ficção, começa a ganhar cada vez mais espaço na rotina das pessoas, gerando cada vez mais dúvidas sobre os limites éticos, sociais e tecnológicos da convivência com essas máquinas cada vez mais inteligentes.
"O Blade Runner traz muito essa questão do que te diferencia das máquinas quando as máquinas começam a ter sentimento, né? Aquela cena final, por exemplo, que o cara fala, 'Eu vi coisas que um ser humano jamais conseguiria ver na vida dele' só que ao mesmo tempo ele nunca vai sentir aquilo que um ser humano vai sentir também", comenta o Supervisor de Serviço ao Cliente do MetroRio e entusiasta do gênero.
Além disso, ele ainda reforça uma preocupação que muitos expressam hoje: como as inteligências artificiais afetam ou vão afetar futuramente os empregos das pessoas. "Tenho um amigo que é dublador, e a profissão dele está acabando. É muito doido pensar que uma profissão pode acabar. E eu acho que isso vem muito da reprodução em massa. Essa coisa da indústria mesmo, faz as coisas perderem a essência. Mas isso também vem muito do capitalismo, que é outra coisa que o cyberpunk critica. Eu acho que isso tudo faz parte desse parasita chamado capitalismo que vai sugando tudo para si como um buraco negro", desabafa Daniel.
Outro ponto muito presente no universo ficcional e no real é a presença da globalização. É comum ver uma convergência de culturas em ambos, como explica o autor de Zona Livre, André de Carvalho. "Tem essa coisas da globalização que torna a cultura mais homogênea, mas ao mesmo tempo tem uma certa resistência. Zona Livre, por exemplo, considero um misto dessa cultura com uma certa resistência. Ele é um produto de uma cultura importada, mas, ao mesmo tempo, resiste a isso; ele não aceita isso passivamente, estou transformando-a em algo brasileiro", finaliza André.
Mesmo com tantas descobertas e inovações tecnológicas que deveriam facilitar a vida das pessoas e serem positivas, a sociedade parece ter regredido de incontáveis maneiras, se aproximando perigosamente de Night City e outras cidades ficcionais. No entanto, ao refletirmos sobre as incontáveis semelhanças entre a ficção e a nossa realidade, ficam algumas dúvidas: Quanto tempo ainda levará até que a gente se encontre imersos na realidade tão cuidadosamente desenhada pelos autores de cyberpunk? Ou será que, na verdade, já estamos vivendo nela, sem sequer perceber, à medida que o progresso tecnológico se mistura com a desigualdade social, o controle corporativo e a perda da identidade humana? O que antes ficava apenas nas histórias futurísticas, já se manifesta no presente. Então a pergunta que deve ser feita é: Ainda existe a possibilidade de reverter essas mudanças ou estamos apenas avançando em direção a um amanhã que já é, de algum modo, parte do nosso hoje.
Reportagem feita por Malu Danezi