O CYBERPUNK
O futuro descrito como distópico e distante já está aqui, e não só já chegou como já começa a virar passado.
O cyberpunk é um subgênero da ficção científica que teve seu auge nas décadas de 1980 e 1990, especialmente nos Estados Unidos. No início, quando o gênero começava a se popularizar, era comum associá-lo a obras como Neuromancer, de William Gibson, Snow Crash, de Neal Stephenson, e Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick, entre outras. Com o tempo, à medida que o gênero se expandia, outros produtos começaram a ganhar destaque. Entre os exemplos mais famosos estão o anime Akira (1991), o filme Blade Runner (1982), baseado na obra de Dick, que recebeu um remake em 2017, e o aclamado jogo de videogame Cyberpunk 2077, da CD Projekt RED.
Desde o início, as narrativas cativam o público pelo contraste entre o alto desenvolvimento tecnológico com a baixa qualidade de vida presente no futuro distópico. "Nele a gente tem acesso a tecnologia avançada, como smartphones, letreiros digitais e um monte de inovações. Mas, ao mesmo tempo, há pessoas vivendo na miséria e banalizando a tecnologia, que, ao invés de estar servindo para melhorar a qualidade de vida das pessoas — tornando-as mais felizes, saudáveis e funcionais — a tecnologia serve ao capital. As pessoas passam mais perrengue, porque ela precariza a vida delas", explica Rapha Pinheiro, artista, quadrinista, professor e editor dos HQs do Universo Gambiarra, projeto transmídia que é ambientado em um Rio de Janeiro cyberpunk.
De maneira geral, seus cenários são inspirados em cidades futurísticas e trazem uma mistura de becos sujos e insalubres, neons hipnotizantes, um excessivo consumo de drogas, o alto índice de violência e o mais importante: tecnologias e automações que parecem saídas de um sonho, ou, em alguns casos, de um pesadelo. "É uma estética meio futurística, só que ao mesmo tempo humanamente decadente. É como se a gente tivesse conseguido o máximo de tecnologia, só que o mundo está acabando em paralelo", explica Daniel Kristensen, Supervisor de Serviço ao Cliente do MetroRio e entusiasta do gênero.
O cyberpunk nasce como uma ferramenta para traduzir o imaginário da época de como seria o futuro da sociedade com a evolução das tecnologias e a tomada do controle estatal por megacorporações. "Você sempre é meio que uma criatura do seu tempo, porque todas as coisas que estão acontecendo de uma certa maneira, entram no seu trabalho. E o Neuromancer acaba sendo um símbolo de resistência como uma coisa muito antes do seu tempo. Gibson achou algo familiar no desconhecido", explica Pedro Inoue, designer e ativista que foi responsável pelas capas da trilogia de Neuromancer, de William Gibson.
"Toda essa cena cultural nasce nesse momento onde a internet é anônima, ela é pirata, ilegal, e traz todos esses questionamentos. E eu acho que o Gibson, quando entra nesse mundo, está fazendo parte de uma cultura do tempo, do momento dele e dando voz a isso", comenta Pedro.
O influenciador digital, Maicon Douglas, conhecido como @umleitordescifi, usa suas redes para discutir e indicar produtos do gênero. Leitor voraz de cyberpunk, ele explica que o movimento usa o exagero como forma de propor uma análise crítica mais aprofundada. "Ele usa uma hipérbole para trazer para a nossa realidade. São coisas que, às vezes, não faz parte da minha realidade, mas acontece e é importante ser discutido. Muitas pessoas pensam 'Nossa, nada a ver isso daí', mas se for parar pra pensar, faz sentido, sabe?", comenta ele.
Um exemplo são os implantes de chips neurais. A tecnologia que há pouco tempo parecia pertencente apenas aos livros de ficção científica, hoje já começa a se tornar realidade com as investidas do empresário Elon Musk. A empresa que está desenvolvendo o produto se chama Neuralink, e promete que com o novo 'Telepathy' será possível controlar seu telefone ou computador apenas com o pensamento. Inicialmente eles serão implantados em pessoas que perderam os movimentos dos membros superiores e inferiores. "Imagine se Stephen Hawking pudesse se comunicar mais rápido que um datilógrafo ou um leiloeiro. Esse é o objetivo", relata ele em um tuite.
Em geral, quando se trata de ficção, esse tipo de tecnologia costuma levantar questões sobre ética e privacidade dos usuários, como é o caso do livro Zona Livre (2021), de André de Carvalho. A obra conta a história de um entregador de aplicativo de São Paulo, que, após perder o emprego em uma briga de trânsito, se envolve com um grupo de rebeldes revolucionários. Juntos, eles decidem investigar e expor a verdade sobre um dispositivo chamado Neurolink, um chip neural que propõe o armazenamento de sonhos e pensamentos.
O autor de Zona Livre explica: 'Talvez seja possível esse link entre o cérebro e uma interface digital. Talvez seja uma das grandes preocupações da nossa ficção científica, porque a gente vê a série Black Mirror, por exemplo, fez sucesso para caramba. E ela já traz esses questionamentos da tecnologia no nosso corpo, né?'
High tech, low life
Outra característica marcante do cyberpunk são as luzes neon, que tentam trazer vida a uma cidade que substitui quase toda a interação e as funções humanas por alternativas robotizadas e sintéticas, e acabam apenas enaltecendo as diferenças entre os humanos e as automações. No entanto, os personagens estão presos em um mundo que despreza a carne e valoriza as modificações, sem conseguir encontrar formas de escapar dessa realidade.
"Os personagens estão sempre atolados de pensamentos, de coisas e é sempre muita informação que gera um grande isolamento", diz Maicon.
Na perspectiva dos personagens, as tecnologias trazem a sensação de liberdade. A ideia de poder se conectar instantaneamente com qualquer lugar do mundo, usando apenas um dispositivo na palma da mão, ou de vivenciar experiências multissensoriais que parecem reais, faz com que esses personagens se sintam livres e, muitas vezes, imunes às consequências. No entanto, o que inicialmente é apresentado como uma ferramenta positiva e inovadora acaba tornando-se uma prisão, deixando os usuários reféns e viciados.
O cyberpunk é um gênero de muitos contrastes, além do próprio conceito de alta tecnologia e baixa qualidade de vida, e da contraposição entre as luzes brilhantes e coloridas dos neons e a escuridão dos becos sujos, outro ponto que também chama atenção é o contraste entre a realidade bruta e indiferente com a melancolia e a busca por algo genuíno. Como é o exemplo de K, personagem principal em Blade Runner 2049, que demonstra um desejo intrínseco de se tornar humano e 'sentir'. Muitas dessas características vêm como uma herança dos filmes noir explica Erik Hewitt, um dos criadores do Universo Gambiarra.
"Essa é a influência dos filmes noir, que traz essas histórias policiais com um final trágico", complementa ele.
Apesar da ação intensa e das narrativas agitadas, parece que o peso da solidão e o pessimismo sempre acabam acompanhando os personagens principais. A autora de cyberpunk, Hunter, explica que tinha muita dificuldade em encontrar um gênero antes de começar a escrever, até perceber uma série de características semelhantes ao gênero. "Eu comecei a ver que todo o texto que eu escrevia tinham algumas coisas em comum. Que era a melancolia, a atitude 'vou viver minha vida, vou beber, vou usar droga e depois eu vou lidar com as consequências disso', e ter sempre uma corporação ou governo querendo oprimir o trabalhador e essa pessoa ser totalmente revoltada com isso", comenta el
As críticas que permeiam o gênero
O tema critica diversas características tanto da sociedade ficcional quanto da atual, e uma das mais expressivas é a crítica ao conformismo. Apesar da falsa ideia de liberdade, os personagens se encontram soterrados por tantos vícios e, mesmo que conscientes dos problemas ao seu redor, acabam caindo em uma uma rotina conformista onde não buscam grandes mudanças no sistema que os oprime, apenas meios de enfrentar pequenos problemas que permeiam o dia a dia.
"O cyberpunk não é sobre mudar o mundo. É sobre você se ajustar a ele e sobreviver", explica Maicon
Porém, essa não é uma regra. Existem várias produções que trazem personagens revolucionários que cansam de estar presos nesse sistema opressor e buscam meios de mudar o ambiente em que vivem de forma mais abrangente. "É interessante esse contraponto, porque eu li o Zona Livre, de André de Carvalho, onde o personagem principal quer mudar o mundo, e logo em seguida eu li o Olhos de Pixel do Lucas Mota, onde a personagem principal só quer sobreviver", comenta Maicon.
André de Carvalho, autor de Zona Livre, coloca em seu livro a luta com o sistema opressor e as inteligências artificiais como centro da narrativa, e propõe uma análise não conformista apesar do gênero. "O cyberpunk tem esse lado mesmo, chegando a ser um paradoxo, porque ao mesmo tempo que ele está criticando esse sistema, ele tem esse lado conformista. Mas eu o vejo como um veículo para crítica social. Nem todas as obras são assim. Não acho que meu livro seja conformista, mas por exemplo Neuromancer tem esse lado. As pessoas ali não querem mudar o mundo, elas querem mudar a vida medíocre delas", explica o autor.
A ficção que previu o futuro
A ficção científica em geral tem o costume de, acidentalmente ou não, 'prever o futuro'. Existem diversos exemplos de ferramentas e acontecimentos que foram relatados em livros e que geraram equivalentes na realidade.
Reportagem feita por Malu Danezi